Nas 500 Milhas de Indianápolis de 1994, a Penske aproveitou uma brecha no regulamento para introduzir um dos mais controversos motores da história do automobilismo - e que seria uma das peças importantes no racha entre CART e IRL que aconteceria pouco depois

Um domínio acachapante da Penske. Assim podemos definir as 500 Milhas de Indianápolis de 1994, há quase 25 anos. Naquele 29 de maio de 1994, Emerson Fittipaldi, no carro vermelho e branco com o número 2, dominou a corrida. Até que, na volta 184, o brasileiro errou e beijou o muro. A vitória acabou no colo de Al Unser Jr., companheiro de equipe do brasileiro, que fechou a prova com uma volta de vantagem em relação a todo o resto do pelotão menos o segundo colocado, Jacques Villeneuve. 

Roger Penske sorria de orelha a orelha. 

Aquela vitória era resultado de uma das mais polêmicas e arriscadas manobras do chefe de equipe na história da Indy – e que levaria não só a Penske ao desastre nas 500 Milhas de 1995, mas que seria peça importante numa disputa de bastidores que culminaria na separação entre CART e Indianapolis Motor Speedway, resultando na criação da Indy Racing League. 

E tudo isso começou 15 anos antes daquela tarde em Indiana.

 

Unser Jr. naquele dia que mudou tudo para a Indy

Até meados dos anos 1970, o principal campeonato de corridas de monopostos dos EUA – chamada oficialmente de National Championship Trail – era sancionada pelo United States Auto Club, a USAC. A entidade é, guardadas as devidas proporções, como a nossa CBA: eles exercem a governança e as estabelecem regras das disputas automobilísticas, entre outras funções. 

Acontece que os principais donos de equipe não estavam contentes com a USAC, principalmente em relação ao repasse do crescente dinheiro dos direitos de TV e outras receitas, que ficavam sob o controle da entidade. Para piorar, oito cartolas da organização perderam a vida em um acidente aéreo em 1978. Além disso, Tony Hulman, mítico presidente do Indianápolis Motor Speedway (também conhecido pela sigla IMS) e responsável por muito do crescimento da Indy 500 a partir dos anos 1940, morreu pouco antes, em 1977. 

Em meio a essa confusão, os donos de equipe Dan Gurney, Roger Penske e Pat Patrick lideraram um movimento de ruptura, inspirado naquilo que Bernie Ecclestone (até então também dono de um time, a Brabham) estava fazendo na Fórmula 1. Os três fundaram a Championship Auto Racing Teams, CART, e fizeram uma série de exigências – que não foram aceitas. Os rebeldes então estabeleceram um campeonato concorrente, que teve a primeira prova em março de 1979.

Indy 500 de 1979: a primeira após a divisão entre CART e USAC e também a primeira vitória da Penske como construtora, com Rick Mears ao volante

O IMS ficou do lado da USAC, que continuou sancionando as 500 Milhas. Mesmo dentro dessa batalha política, as equipes da CART não podiam ficar de fora da prova mais importante do ano, que passou a contar pontos para os dois campeonatos. Para resumir um pouco a história a partir daí, basta dizer que as duas partes nunca se entenderam muito bem. Primeiro, a USAC tentou barrar as equipes da CART na Indy 500 de 79. Depois, tiraram a vitória de Bobby Unser na prova de 1981 e a deram para Mario Andretti, esperando causar um racha entre Roger Penske e Pat Patrick – o que não aconteceu, com Unser meses depois sendo finalmente creditado como o vencedor. 

O importante, aqui, é que o campeonato da USAC – a essa altura chamado de Gold Crown Championship – perdeu relevância até se resumir a uma prova única: as 500 Milhas de Indianápolis. Já a CART, soberana e com um verdadeiro campeonato, fechou um acordo de licenciamento da marca Indy com o IMS, assumindo o nome fantasia de “IndyCar” a partir de 1992. 

Todo este preâmbulo para explicar um detalhe importante: a temporada regular da Indy era sancionada pela própria CART, que definia as regras do certame, inclusive as técnicas. Só que o campeonato consistia também de uma prova, a Indy 500, que era sancionada por outro órgão – que podia ter as suas próprias regras. E tinha!

Uma confusão, não é? Mas já continuamos isso. Há um outro ponto-chave que é necessário lembrar

Roger Penske foi figura importante nas grandes transformações que aconteceram na Indy (INDY 2018; ROGER PENSKE; GP DE SONOMA; INDYCAR)

A partir do anos 1970, a Penske se estabeleceu como a grande equipe dos EUA. Um dos segredos era que Roger Penske percebeu que não poderia contar com chassis de fornecedores como McLaren, Parnelli e Eagle, que faziam sucesso na época. Ele precisava de carros que fossem únicos, só dele, em uma vantagem técnica em relação aos adversários. Começou assim a construção dos chassis Penske na Inglaterra, fábrica criada durante a aventura do norte-americano na Fórmula 1

Ainda assim a Penske continuou dependendo dos motores Ford-Cosworth, que eram utilizados por quase todos os times a esta altura. Tratava-se de uma variação do projeto que fazia sucesso na F1 – a grande diferença é que o V8 teve a capacidade cúbica disminuida de 3l para 2,65l, passou a ser movido a metanol e ainda teve o turbo adicionado. Porém, dois engenheiros da Cosworth, no começo dos anos 1980, não estavam contentes com a evolução do projeto para a Indy. Os nomes deles? Mario Illien e Paul Morgan. Ambos saíram da empresa.

Os dois engenheiros ligaram para Roger, oferecendo um novo motor para o dono de equipe – que aceitou financiar a empreitada. Juntos, no final de 1983, Illien e Morgan fundaram a Ilmor – junção dos sobrenomes de ambos – e, em poucos meses, já estavam construindo um novo motor para o time norte-americano. Penske, que ficou com 50% da nova empresa, vendeu então metade do que tinha (25% do total) para a General Motors, que injetou mais dinheiro no negócio. Em 1986, a Penske apareceu em Indianápolis com o primeiro carro do time com motor Chevrolet – na prática, projetado e fabricado pela Ilmor. A primeira vitória do Chevy Indy V-8 no famoso Brickyard aconteceria em 1988. Em 1989, eram seis equipes que competiam com a usina – e o conjunto Penske-Chevy era o mais forte do grid.

No final de 1993, a GM saiu do negócio e, em 1994, os motores de Illien e Morgan passaram a competir na IndyCar simplesmente como Ilmor. Foi aí que a genialidade de Roger Penske surgiu mais uma vez

Em 1993, Fittipaldi venceu a Indy 500 com um Penske com motor Ilmor-Chevrolet

Como já foi explicado, a USAC tinha regras específicas para as 500 Milhas de Indianápolis. Em sua maioria elas eram iguais aos regulamentos da CART, mas havia aqui e ali alguma exceção. Uma delas era justamente nas especificações dos motores. Por algum motivo os dirigentes do Automovel Club buscaram diminuir os custos dos times que quisessem participar da corrida – e isso, na cabeça deles, incluia poder usar os arcaicos motores small block produzidos para carros de passeio em Detroit

Por isso, os times poderiam pegar motores “pushrod” (OHV, com comando de válvulas por meio de varetas) de produção em massa e modificá-los extensamente, desde que o bloco e poucas peças ainda fossem originais – além de existirem algumas restrições de projeto, como apenas duas válvulas por cilindro. Para compensar essas limitações, as unidades de potência poderiam ter 3,43l (contra 2,65l das regras da CART) e a pressão do turbo de chegava a 1860 hPa (enquanto os outros tinham o limite de 1520 hPa).

A artimanha havia se popularizado por meio dos Buick V8, que eram baratos e tinham muito torque, mas, em comparação aos concorrentes, ficavam devendo em confiabilidade e bebiam muito metanol. Foi com esse motor que Roberto Guerrero fez a pole em 1992, para rodar ainda na segunda volta de apresentação.

Por outra razão nunca explicada e sem fazer alarde, a USAC tirou as limitação do uso de bloco de motor de produção nas unidades OHV em 1991. Foi essa brecha no regulamento que Roger Penske viu. Em segredo, a Ilmor começou a desenvolver um motor OHV totalmente construído propositalmente para corridas, se aproveitando de todas as vantagens do regulamento – ainda que também houvesse desvantagens. 

Poucos sabiam do projeto, mesmo na própria Penske – um pequeno time de engenheiros e mecânicos ficou responsável pela parte final da montagem nos EUA, trabalhando durante noites e madrugadas em uma oficina da Penske Truck Rental sem que o resto da equipe soubesse. O contato com a Ilmor, na Inglaterra, era feito por telefone e, quando era necessário enviar ou receber um peça, compravam assentos no Concorde para transportá-las. 

Nessa parte final, a Mercedes, que já era parceira da Ilmor na F1 e havia comprado a parte da empresa que estava nas mãos da Chevrolet, entrou e financiou o projeto – batizado oficialmente de Mercedes-Benz 500l. 

A artimanha se tornou pública no final de abril, quando o motor concluiu 500 milhas pela primeira vez em um teste em Michigan. Por isso, o burburinho era geral quando a Penske chegou ao Indianápolis Motor Speedway com o PC-23 equipado com aquela surpreendente usina de potência decorada com a estrela de três pontas. Dizia-se que o motor chegava aos 1.024 hp, que era entre 150 a 200 hp a mais que os V8 dos concorrentes. Outra grande vantagem era o torque, muito superior ao resto. Tudo isso para ser usado em uma única corrida – e, podemos dizer também, em uma corrida única. Mas, será que o 500l aguentaria a prova inteira sem quebrar?

Mercedes-Benz 500l, o motor da discórdia

No Pole Day, Al Unser Jr., no Penske-Mercedes #31, garantiu o primeiro lugar no grid. Um surpreendente Raul Boesel, dirigindo um Lola-Ford da Dick Simon Racing, ficou em segundo, seguido pela Penske-Mercedes #2 de Emerson Fittipaldi. O terceiro carro de vermelho e branco, o #3, ficou de fora do primeiro dia da classificação após Paul Tracy sofrer uma concussão causada por um acidente nos treinos. Por isso canadense classificou o carro apenas no domingo, conseguindo o segundo melhor tempo do dia – e o 25º lugar do grid. 

No dia 29 de maio, a luta pela vitória foi uma batalha quase particular entre Unser e Fittipaldi – Jacques Villeneuve, com um Reynard-Ford da Forsythe Green Racing, foi o único intruso, assumindo a liderança quando a diferença de estratégias permitia. Ainda assim, a confiabilidade e o consumo eram preocupações para a Penske. 

No trecho final, o brasileiro e o norte-americano estavam em compassos diferentes. Fittipaldi havia liderado nada menos que 145 voltas e tinha ao menos um giro de vantagem em relação a todos os concorrentes, incluindo o companheiro de equipe. Porém, o bicampeão da F1 fatalmente precisaria fazer um splash and go na volta 194 ou torcer para uma longa bandeira amarela, caso contrário teria uma pane seca. Para tentar chegar ao final, o #2 passou a andar mais devagar e foi ultrapassado pelo #31, descontando a volta atrás. Al Jr não precisaria mais parar e acelerava para tentar assumir a liderança justamente no pit stop de Emerson. 

O brasileiro então errou, deixou o carro escapar e acertou o muro no 184º giro. O leite da vitória era de Al Unser Jr. 

Unser Jr., o Penske-Mercedes e o famoso troféu Borg-Warner

Da mesma forma que o Brasil vive, após cada eleição, um eterno terceiro turno, aquelas 500 Milhas de Indianápolis demoraram a acabar. O inovador motor da Ilmor dividiu USAC e CART. O órgão queria permitir a unidade de potência em 1995, ainda que preocupada com o aumento de custos causado pela medida. Já a associação dos construtores queria a proibição.

Duas semanas após a Indy 500, a USAC anunciou as regras para 1995: o Mercedes-Benz 500l (e qualquer outro que quisesse seguir a mesma brecha no regulamento) estava permitido, mas com uma pressão menor no turbo. Algumas equipes encomendaram motores à Ilmor, enquanto Cosworth e Menard estavam considerando construir seus próprios OHV. Tudo isso trazia um cenário tenebroso para custos, no qual os times teriam um motor de 2,65l para a temporada regular e um pushrod específico para as 500 Milhas. 

A medida durou pouco. Por motivos que Roger Penske chamaria de “pressões políticas”, semanas depois a USAC baixou novas regras que neutralizaram a brecha no regulamento para o ano seguinte. Na prática, o Mercedes-Benz 500l estava inviabilizado e nunca mais seria utilizado em competição. 

Àquela altura, Tony George, neto de Tony Hulman e presidente do Indianápolis Motor Speedway, não estava nada contente. O executivo acreditava que a categoria estava muito cara, corria muito em circuitos mistos – e a acusava de favorecer apenas as equipes nas decisões políticas. George havia pouco antes renunciado ao posto que tinha no conselho da CART por esses motivos. 

Em julho, em meio a confusão do regulamento, o executivo aproveitou a deixa para anunciar a própria categoria, a Indy Racing League, que seria inicialmente sancionada em parceria com a USAC. A IRL contaria apenas com carros pré-aprovados para participar, encerrando qualquer possibilidade de um time repetir o que a Penske havia feito. 

O Mercedes-Benz 500l foi a desculpa perfeita para que Tony George botasse seu plano em prática.

A Indy 500 de 1995 foi a última no modelo em voga até então. Sem os pushrods, a Penske não só tinha perdido sua grande vantagem em relação aos concorrentes, como o retorno aos tradicionais Ilmor V8 de 2,65l (agora chamados de Mercedes-Benz IC108B) deixou o time defasado em relação aos dados que tinham da pista. Quando Roger Penske viu que não conseguiria classificar Fittipaldi e Unser Jr, chegou a colocá-los em chassis Lola da Rahal-Hogan. Nem isso deu certo.

Depois do amplo domínio de 1994, Penske e seus dois pilotos ficaram de fora das 500 Milhas de Indianápolis de 1995.

Arie Luyendyk e o G-Force-Oldsmobile que venceu a Indy 500 de 1997, a primeira sob um regulamento técnico totalmente diferente do da CART

Em 1996, como prometido, Tony George iniciou seu novo campeonato. Após ver evocado um “bloqueio” para entrada de mais de oito carros de fora da nova liga na Indy 500, a CART passou a boicotar a prova – e foi em busca da internacionalização da categoria. Com o fim do contrato de licenciamento com IMS, em 1997, trocaram a expressão IndyCar por Champ Car.  No mesmo ano, a IRL começou a usar um regulamento técnico completamente diferente da rival para diminuir custos, incluindo motores V8 aspirados. O distanciamento havia se tornado inconciliável. 

Essa história só mudaria a partir de 2000, quando a Chip Ganassi, até então na CART, comprou um chassi G-Force com motor Oldsmobile e inscreveu Juan Pablo Montoya na principal prova da categoria dissidente – e o colombiano se sagrou o vencedor. Ao ver que, mesmo em um certame mais fraco, as 500 Milhas continuavam a ter toda a atenção da mídia e dos patrocinadores, Roger Penske engoliu o orgulho e foi participar da prova no ano seguinte.

Houve, no entanto, um porém: as regras de publicidade de tabaco nos EUA permitiam, na época, que uma marca de cigarros estivesse presente no país em apenas uma categoria esportiva por vez. Como competia na CART com o nome da Marlboro em seus carros, a Penske foi proibida de usar a marca na IRL – e, dessa forma, Hélio Castroneves conquistou a primeira vitória nas 500 Milhas em um carro sem patrocínio máster, ainda que mantivesse o design e as cores da caixa dos famosos cigarros. 

Para 2002, a Philip Morris, a dona da marca, bateu o pé: queria ver escrito Marlboro na mais prestigiosa prova do automobilismo norte-americano. Restou a Roger Penske romper com a categoria que havia ajudado a criar e migrar de vez para a concorrente. A Champ Car definharia até ser absorvida pela IRL – agora chamada de IndyCar – no final de 2007. 

E pensar que tudo isso aconteceu porque, um dia, o mítico dono de equipe resolveu explorar uma brecha no regulamento… 

Leia também:

– Os maiores vexames da Indy 500

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