Há exatos 20 anos, uma tripulação brasileira estreou no Rali Dakar na categoria dos caminhões. Mas, apesar do ineditismo da experiência nacional, o time formado por André Azevedo e Leilane Neubarth e pelo tcheco Tomas Tomeček conseguiu garantir um terceiro lugar na prova que partiu de Granada, na Espanha, rumo a Dacar, no Senegal

O sonho de Thierry Sabine segue alimentando entusiastas pelo mundo. Ao mesmo tempo em que um grupo de competidores enfrenta terrenos adversos em território peruano na 41ª edição do Rali Dakar, o Brasil celebra nesta quinta-feira (17) um de seus primeiros grandes feitos na maior e mais dura prova off-road do planeta.

Há exatos 20 anos, uma equipe nacional levava a bandeira do Brasil ao pódio do Rali Dakar pela primeira vez na classificação geral. E logo na estreia brasileira na categoria dos caminhões.

Em 1999, quando a disputa aconteceu entre Granada, na Espanha, e Dacar, no Senegal, passando por Marrocos, Mauritânia, Mali e Burkina Faso, André Azevedo e tcheco Tomas Tomeček contaram com a jornalista Leilane Neubarth para integrar o time que iria percorrer os 9.393 km ― sendo 5.638 km de trecho cronometrado ― a bordo de um caminhão Tatra.

Entre os três componentes do #425, Leilane era a única que debutava no Dakar. Ao lado de Klever Kolberg, André tinha sido um dos primeiros brasileiros a se aventurar na prova, de moto, ainda no fim da década de 80. Tomas, por sua vez, já tinha até conquistado o título, em 1995, atuando como copiloto de Karel Loprais, um daqueles poucos que ao longo da história receberam a gloriosa alcunha de ‘Monsieur Dakar’, hoje ostentado por Stéphane Peterhansel.

Enquanto para muitos a participação naquela que é ainda hoje a maior e mais dura prova off-road do planeta é a realização de sonho, para Leilane tudo começou como um desafio. Foi um convite inusitado que levou a jornalista da TV Globo à prova idealizada por Thierry Sabine. E um convite que partiu praticamente de desconhecidos.

Destemida, porém, Neubarth encarou o desafio e, mesmo sem saber direito as reais condições que enfrentaria, embarcou rumo do continente Europeu para iniciar uma jornada que marcaria não só sua trajetória profissional, mas também sua vida e a própria história do esporte a motor brasileiro.

O convite

Leilane Neubarth chegou ao Rali Dakar por acaso. Em 1998, atuando como mestre de cerimônias em um evento da revista ‘Exame’, foi desafiada por Klever Kolberg e André Azevedo a “tirar a roupa arrumadinha” de apresentadora de telejornal e enfrentar as agruras do deserto do Saara.

“Foi uma situação absolutamente casual”, conta Leilane em entrevista ao GRANDE PREMIUM. “Eles estavam fazendo a palestra, era um evento para, sei lá, umas 400, 450 pessoas, uma coisa assim, e aí eles brincaram comigo e disseram: ‘Ah, a gente sabe que a Leilane tem moto, que a Leilane gosta de aventura, mas eu quero ver se a Leilane tem coragem de tirar essa roupa arrumadinha e ir com a gente para o Paris-Dakar participar de uma competição’. Aí eu não ia deixar essa bola quicando, né”.

“Eu falei: ‘Olha, temos aqui 450 testemunhas de que eu fui convidada, se eles voltarem atrás, eu vou pedir para vocês deporem a meu favor’”, relata, rindo, a jornalista.

E estava lançado o desafio. De volta ao Rio de Janeiro, Neubarth transmitiu o convite a Luiz Nascimento, então diretor do Fantástico. Até então, a imprensa brasileira recebia o chamado ‘feed’, os melhores momentos editados pela emissora francesa responsável pela geração das imagens do Dakar, mas não marcava presença na competição.

Responsável pelo convite, André exalta a importância da presença de Leilane na equipe e lembra o interesse despertado pela presença da jornalista.

“Até então, a gente tinha muita mídia espontânea, mas jamais uma pessoa de peso nos acompanhando. E ela foi surpreendente”, elogia André ao GP*. “A divulgação que ela conseguiu à época — ela era âncora do ‘Bom Dia, Brasil’ ao lado do Renato Machado —, era porque sua popularidade era muito grande, e sua força era muito grande também na Globo. E as outras mídias queriam acompanhar o que a Leilane faria nessa aventura. Foi muito legal!”, resume.

“Imagina eu, sendo o primeiro piloto brasileiro de caminhão, ainda conhecendo a categoria, e também sem conhecer o Tomas Tomaček. Foi um ano de muitas mudanças e, graças a Deus, de mudanças para melhor”, comenta.

Alguns dias depois, André reiterou o convite e, pouco tempo mais tarde, a participação de Leilane no Dakar estar definida. Mas restava um porém: contar para o então marido, o também jornalista Olívio Petit.

Além de copilota, Leilane Neubarth produziu boletins para a Globo durante o Granada-Dakar (Leilane Neubarth em meio a um dos boletins após caminhão sofrer uma batida (Foto: Reprodução/Memória Globo))

“Depois que eu conversei com o André, com a Globo, que a coisa estava alinhavada e tal, eu demorei uns três dias para conseguir contar para o Petit”, conta. “Aí um dia eu falei com ele: ‘Olha, eu fui convidada para o Paris-Dakar e eu aceitei’. Aí ele falou assim: ‘Você está louca? Você sabe o que é o Paris-Dakar?’”, recorda.

“Aí eu falei: ‘Eu sei mais ou menos o que é o Paris-Dakar’. E ele falou: ‘Olha, isso é uma loucura. Você não pode aceitar. Todos os anos morre uma pessoa no Paris-Dakar. O Paris-Dakar é a corrida mais perigosa do planeta. Tem risco de bomba, tem risco de assalto, tem risco de acidente. Você não pode aceitar’. Aí virei para ele ― ele é jornalista também ― e falei: ‘Bom, então você está me dizendo que se você fosse convidado, você diria não?’. Ele tremeu. Porque falei: ‘Presta atenção, esse convite não vem duas vezes. Eu não posso dizer: ‘Ai gente, esse ano eu não quero não, mas no ano que vem eu quero’. Isso não existe. O convite vem. Ou você aceita ou você não aceita’”, conta Neubarth.

O então marido, no entanto, alertou Leilane dos perigos envolvidos na aventura off-road. “O Petit me trouxe várias, na época eram fitas de betacam para eu assistir em casa. Várias. Aí eu assisti caminhão explodindo, assisti acidente, assisti capotamento, assisti todas as desgraceiras do Paris-Dakar e tudo bem. Continuei”.

O preparo
 

Ir ao rali, no entanto, não era uma experiência assim tão simples. Até por conta de algumas exigências de ordem prática.

“Para que eu pudesse fazer a minha inscrição no Paris-Dakar, a organização exige que eu tenha carteira de caminhão, carteira de motorista de caminhão. Então, fui fazer autoescola”, explica Leilane. “Isso era mais ou menos setembro. O primeiro convite veio no fim de agosto, a coisa se concretizou em setembro e a gente embarcou em dezembro”, detalha.

Concluída essa parte prática, Neubarth se deparou com outro problema.

“O caminhão era patrocinado pela Lubrax, e a Globo não queria que eu usasse a marca Lubrax por uma questão da empresa, então eu não podia usar”, diz. “Por outro lado, era perigoso não usar a marca Lubrax, pois, se a gente tem um acidente, as pessoas que estão uniformizadas, com um uniforme da equipe, são as primeiras a serem atendidas, porque imediatamente o socorro reconhece aquela pessoa como um competidor”, recorda.

“Então foi feita uma roupa para mim que tinha a marca, uma onda verde e amarela, mas não tinha o nome”, conta.

Antes de viajar, também era preciso preparar o físico para as condições extremas da disputa.

“Fizemos a preparação antes nas dunas de Cabo Frio, tendo a Leilane ao nosso lado. Ela foi uma guerreira no caminhão, contribuiu bastante para o resultado”, elogia André. O pioneiro do Dakar relembra que Leilane demonstrou, desde o início, ter não apenas condições de fazer parte da tripulação, mas também a paixão e o espírito de aventura.

“Chegamos a atolar algumas vezes, mas foi mais para ver o ritmo que ela suportaria durante dez, 11, 12 horas dentro do caminhão, e se preparar para isso. Lembro que um dos fatores que me chamou a atenção, que me deu um estalo quando a gente se conheceu no ‘Empreendedores do Ano’, foi que ela disse que tinha uma moto e andava de vez em quando em trilha. E aí, vimos que ela tinha um sangue aventureiro. A convidamos para o teste em Cabo Frio, e foi aí que aconteceram as coisas. Ela agregou muito valor: primeira mulher, competindo com a gente, era a Leilane, que não era do metiê, mas tinha todo um perfil que se encaixava com tudo aquilo.”
 

((Foto: Reprodução/Faróis de Milha))

A surpresa

 

Antes de embarcar, Leilane conhecia pouco sobre a prova. “Sabia que era perigosa, sabia que tinha três categorias ― moto, carro e caminhão ―, sabia que era uma prova contra o relógio”.

No entanto, a jornalista esperava uma experiência diferente, inclusive para preparar conteúdo para a TV.

“Achava que ia poder pedir para o Tomas, por exemplo: ‘Para um pouquinho e deixa filmar aqui que está bonito para mostrar para o Brasil’”, conta. “E isso não rola. Você não para nem para fazer xixi. Você não para, não para, é contra o relógio mesmo. Todos os dias você tem um percurso para atingir. Você sai do ponto A e chega no ponto B. Este percurso é cronometrado, você tem de fazer no menor tempo possível. A sua colocação neste percurso vai garantir sua largada no dia seguinte. Se você for o 20º, você vai largar em 20º. Se você for o primeiro, você vai largar em primeiro”, explica.

Mas não foi só isso que a surpreendeu. Leilane tampouco imaginava que estaria dentro de um caminhão competitivo. Por se tratar da primeira experiência brasileira na categoria, a jornalista esperava andar no fundo do pelotão.

“Achei que, como era o primeiro caminhão, a gente ia ficar lá na rabeta, não ia disputar porra nenhuma. A gente vai ficar lá atrás, quase que fazendo uma ilustração. Era a primeira vez que vai ter o Brasil”, contou. “Mas não! O nosso piloto, o Tomas, tinha muita experiência no Paris-Dakar. A República Tcheca é tradicionalíssima em competição de caminhão de velocidade, então ele era um excelente piloto de velocidade em caminhão e tinha sido por cinco anos navegador de [Karel Loprais] um senhor conhecido como ‘Monsieur Dakar’, que era um senhor de sessenta e tantos anos, e que era um dos maiores vencedores da categoria caminhão do Dakar. E o Tomas tinha sido o braço direito dele, o navegador dele por muitos anos”, relata.

“Então qual era a história do Tomas? Ao assumir um caminhão, ele queria provar ao ‘Monsieur Dakar’ que sabia muito. Então ele estava botando as vísceras, o sangue dele ali. Essa é a história. E eu não sabia de nada disso! Eu achei que a gente estava indo na boa”, revela. “Quando chegou lá, comecei a entender tudo. Primeiro que, no prólogo, na primeira contagem de tempo, a gente saiu em segundo lugar. Caceta! Segundo lugar? Na primeira prova, a gente saiu em primeiro. Depois a gente pegou o terceiro, enfim, a gente acabou chegando em terceiro”.

A performance do caminhão não surpreendeu apenas Leilane, mas também André. “Foi uma surpresa para mim, também para o Tomas. Não era um caminhão novo, estava no quarto ano dele, desde 1995. Não era o caminhão mais competitivo. Mas o Tatra era o caminhão mais robusto em termos de resistência. Então tivemos muitos poucos problemas”.

Leilane Neubarth viu de perto as surpresas e perigos do Deserto do Saara

A face mais dura do Dakar, porém, não tardou a se mostrar. Em um ambiente de extrema competitividade, era Tomas quem ‘chamava’ Leilane à realidade.

“Teve uma vez que a gente bateu, teve uma vez que a gente atolou, teve um percurso que muita gente atolou logo no início”. lembra. “A gente recebe um kit, um kit com três garrafinhas d’água e umas coisas bem calóricas, que é o que você vai comer da hora que você sai até a hora que você chega no acampamento. Caso você se perca, tenha um acidente, é esse o seu kit sobrevivência. Muita gente estava atolada, e tinha um rapaz do lado de fora, desesperado, abanando a mão. A gente estava devagar com o caminhão porque era muita areia, muito perigoso. A gente estava tentando não atolar, e ele pedindo água, pedindo água, pedindo água… Peguei minha água, uma das minhas três [garrafas], e joguei pela janela para ele”.

“Aí o Tomas virou para mim, muito sério, em inglês, e falou: ‘Você deu a sua água. Se a gente se perder, se a gente tiver um acidente, se a gente ficar parado, quem vai ter menos uma água é você. Ele pediu a sua água não é porque ele não tinha, é porque ele queria mais uma’”, conta. “Aí entrei em pânico porque falei: caraca, é a lei da selva em pleno deserto! Comecei a entender que aquilo é uma competição. Veja, eu sou jornalista, nunca tinha participado de competição nenhuma na minha vida, não tinha a menor ideia. Aquilo, para eles, é absolutamente sério, é uma questão de vida ou morte. Então ali tudo vale”, frisa.

A relação com Tomas, aliás, tinha seus momentos curiosos. O tcheco delegou algumas funções para Leilane, inclusive cuidar da buzina do caminhão. No primeiro momento, a jornalista estranhou a missão, mas o piloto garantiu que ela entenderia a importância daquele trabalho. E foi isso mesmo o que aconteceu.

“Primeiro largam as motos, depois largam os carros, por último largam os caminhões. O nosso caminhão era tão competitivo que a gente passava pelos carros, os menos competitivos, e chegávamos, inclusive, a alcançar algumas motos”, afirma Leilane. “E, às vezes, o Tomas vinha no meio do deserto, porque não tem uma estrada, é uma pista sem fim, uma pista larga ao que os seus olhos podem ver, mas, como você tem uma coisa chamada roadbook [planilha de navegação], você deve se manter num parâmetro ali de 10 km daquilo que foi traçado, até porque, se você sair, você pode pegar uma mina, pode explodir o caminhão, porque tem problemas geopolíticos, tem terrorismo, aquela beleza toda… Então vai todo mundo mais ou menos com um cálculo de 10 km, no mesmo trilho. E, às vezes, você via uma pessoa competindo de moto, e o Tomas com um caminhão de 12 toneladas fungando no cangote do cara que estava na moto”, relembra. 

“Quando ele me deu a buzina, eu olhei para ele e disse: ‘Você está de sacanagem, né? Você está me dando a buzina porque eu sou mulher. Isso é brincadeira sua, né? Que papo é esse?’. E ele falou: ‘Buzina é importante. Você vai aprender que é importante’”, relata. “Nesse dia, lembro que a gente estava 'grudado' no pescoço do competidor de moto, aí o Tomas dizia: ‘Buzina’. Eu pegava e fazia: ‘pam’. ‘Pam, pam’. O Tomas ficou bravo comigo e falou: ‘Buzine como um caminhoneiro!’. Estava cada vez mais perto do cara! Falei: ‘Ele vai atropelar o cara. Ele vai passar por cima do motoqueiro’. E aí buzinei!”, continua.

“Porque você imagina o seguinte: o cara está de moto, com o ruído da moto no ouvido dele, um capacete, tendo de olhar ele qual é o caminho, enfim, quando você buzina na cabeça de um motoqueiro desses, ele quase cai da moto, é um negócio assustador. Mas ele sai da frente e o caminhão vai embora. Porque o Tomas não desacelera. Não desacelera. Era um negócio que eu ficava impressionada. Passei a aprender que realmente a buzina tinha muito valor”, resume.

Mais experiente no mundo off-road, Azevedo destacou a importância das funções da jornalista. “A Leilane atuou muito no controle dos equipamentos do caminhão, analisava dados como motor, temperatura, pressão dos pneus, ia monitorando tudo isso durante o percurso”, explica André. “O Tomas, que era um navegador campeão, cuidou da maior parte da navegação [Azevedo e o tcheco se revezavam também na pilotagem do Tatra] . Eu não tinha nenhuma experiência nos caminhões, mas já tinha a experiência de ter navegado nas motos, então era um bom navegador. E junto com o navegador campeão, fizemos uma boa parceria”.

Apesar de pouco conhecer André e de ter conhecido Tomas apenas quando viajou para o rali, o relacionamento do trio não foi um problema na travessia de Europa para África. Leilane, que contou sua aventura no Dakar no livro ‘Faróis de Milha’, faz questão de exaltar os companheiros de tripulação pela confiança depositada em uma estreante.

“Eu tenho que agradecer… Tanto que, no livro que fiz, agradeço muito a eles, porque a confiança que eles tiveram em mim…”, comenta. “Falando muito sério, o que acontece na equipe é o seguinte: se um dos integrantes desiste ou dá um ataque ou fica com medo ou alguma coisa, a equipe é desclassificada. Então, isso é muito sério. Eles confiaram muito em mim. Se no meio do rali eu dissesse: ‘Não quero mais brincar disso, vou embora, estou em pânico, estou apavorada’, a equipe ia ser desclassificada. Então eu agradeço profundamente a confiança que eles tiveram em mim”.
 

(Caminhão Tatra de André Azevedo, Tomas Tomecek e Leilane Neubarth (Foto: André Azevedo/Arquivo Pessoal))

As dificuldades

 

Reconhecida mundialmente por sua dificuldade, especialmente quando acontecia em território africano, o Dakar também reservou seus perrengues aos tripulantes do caminhão #425 em 1999.

Questionada sobre as maiores dificuldades da prova, Leilane recorda de três situações distintas. Na oitava especial, disputada entre Nioro, no Mali, e Bobo-Dioulasso, em Burkina Faso, no dia 8 de janeiro, o Tatra foi atingido por trás por um caminhão da Kamaz, curiosamente, o mesmo caminhão que tinha ajudado o time brasileiro três dias antes, após o #425 atolar. Um segundo susto, portanto.

Na sequência, no dia 11, na décima etapa, o time de Neubarth, Azevedo e Tomeček acabou se perdendo no caminho entre Mopti e Tombouctou, ambas no Mali. O trio saiu quase 50 km do caminho certo.

“Eu acho que a pior coisa foi a batida. A gente estava em segundo lugar, passou para terceiro, conseguiu manter o terceiro até o final. Mas você estar num caminhão e alguém bater por trás em você foi um momento de muito susto”, comenta. “Acho que a batida foi um momento muito difícil, atolar no deserto. E também teve um dia que a gente se perdeu. Se perder é angustiante, porque você está perdido, o GPS aponta para um lado, você não tem para onde perguntar. A gente encontrou um grupo de tuaregues. Aí a o GPS apontava para um lado e os tuaregues apontavam para o outro. E a gente perdido, perdido no meio do deserto. Foi muito difícil, foram momentos assim muitos difíceis. Esses três”, sublinha.

Esses, no entanto, não foram os únicos sinais de alerta da viagem. Em 13 de janeiro, no anoitecer no acampamento de Tichit, na Mauritânia, o trio soube que um grupo de competidores tinha sido rendido em pleno deserto por 15 pessoas. Armados com metralhadoras, os guerrilheiros levaram dinheiro e equipamentos. Sete equipes acabaram a pé no deserto.

“O assalto aconteceu uma meia hora depois que a nossa equipe passou. A gente já tinha passado naquele momento, então eu já tinha montado minha barraca, já estava me preparando ali para comer, quando a gente viu um burburinho no acampamento”, lembra Leilane. “Aí, quando a gente foi perguntar, eram várias equipes que tinham sido assaltadas, tinham perdido dólar, passaporte, muita coisa. Foi bem ruim. Criou um clima muito tenso no rali. Ficou todo mundo muito mal”, destaca.

Em pleno Saara, a caravana do Dakar teve de conviver lado a lado com tuaregues armados

André também conta suas memórias sobre o dia em que a violência atingiu a caravana do Dakar e lembra que, caso tivessem demorado um pouco mais para resolver um problema com o Tatra, estariam entre as vítimas dos bandidos.

“Tivemos um sistema de freio-motor, que era uma borboleta que encapa o escapamento. Essa borboleta quebrou. Então, o Tomas, muito sabiamente, percebeu o problema, paramos o caminhão, e fomos soldar a borboleta aberta. Era finalzinho da tarde, faltavam uns 70 km para chegar ao acampamento”, recorda. “Quando chegamos, soubemos no jantar que quem permaneceu à noite na especial tinha passado por um arrastão muito sério, como acontece no Rio de Janeiro, só que foi lá no Mali. As pessoas pararam mais de 50 veículos e roubaram documentos, roubaram tudo. Então, se a gente tivesse demorado para consertar o caminhão, então poderíamos ter encarado esse arrastão. Foi o divino que nos ajudou, porque o diagnóstico foi rápido e a solução foi rápida. Aí não andamos tanto à noite pelo deserto, enquanto outros, que demoraram um pouco mais, passaram por esse arrastão”, frisa.

O tripulante tcheco, aliás, já tinha experimentado a violência que atingia o Dakar em tempos de África.

“O Tomas, em 1998, passou por algo assim. Ele estava no caminhão de assistência, não no caminhão de competição. E foi a mesma situação: à noite”, conta André. “Quando esse caminhão sobe uma duna, acontece um barulho estranho, e aí ele vê outro caminhão da Tatra parado e cheio de tuaregues em volta. Os caras tinham atirado os pneus do caminhão, fizeram as duas tripulações descerem, colocaram todos sentados, com as metralhadoras apontadas para eles, limparam o caminhão que estava com os pneus furados, colocaram tudo no caminhão em que o Tomas estava e foram embora em meio ao deserto. E os tchecos só foram resgatados na manhã do dia seguinte”, relata.

As lições

 

A maioria dos participantes do Dakar coloca a prova como uma jornada de autoconhecimento. Depois de inúmeras adversidades, as pessoas acabam saindo diferentes do rali.

“Mudou muita coisa. Mudou muita coisa na minha vida. Primeiro, comecei a dar valor a uma cama muito mais. A um banho. Banho para tomar todo dia. É um valor inestimável você poder tomar banho todo dia. É uma benção”, conta Leilane. “Você ter uma família, porque você fica sozinho. É você e você. E a sua equipe. E você convive com aquelas pessoas, dia e noite, noite e dia, agarrada numa cadeira de caminhão. Você não pode chorar, você não pode nada, porque está todo mundo passando a mesma dificuldade”, continua.

“Então não adianta ficar ‘ah, mulherzinha tá chorando’. Não! Tá todo mundo sofrendo. Homem, mulher, todo mundo. Então não dá para reclamar. Dor de cabeça, angústia, medo, o que quer que você tenha, você tem que resolver com você”, ressalta. “E mesmo a angústia de chegar ao final. Porque tem uma hora que o caminhão foi quebrando de uma tal maneira que eu comecei a temer que a gente não conseguisse completar a prova. Então o medo de você não conseguir chegar no final, porque a gente estava em terceiro, então aí você começa a ficar contaminada por aquela vontade de terminar logo aquela corrida. E aí você fica rezando para aquilo acabar logo. Você não aguenta mais. Tem uma hora que é muito pesado, é muito pesado. Quando acabou, a primeira coisa que eu fiz ― eu fiquei muito feliz ― e aí, depois, quando eu cheguei no quarto, porque finalmente era um hotel, eu abri a boca a chorar. Sozinha. Sozinha”, revelou.

O esforço da estreante, porém, foi reconhecido por seus companheiros de equipe.

“Ela foi muito guerreira. Imagina: calor durante o dia, frio à noite, falta de banho, falta de conforto… tudo isso envolve muito o psicológico da gente”, indica André. “Não é um Dakar como hoje, que tem dez dias e o pessoal dorme no motorhome, dorme em hotel, tem muita etapa em laço… Naquela etapa nossa, o rali era itinerante, e foi uma prova de extremo frio no norte da África, um calor intenso quando a gente estava no meio da África, a caminho de Dacar, e foram todas situações-limite vividas em alta velocidade”, destaca o brasileiro pioneiro no maior rali do mundo.
 

Orgulho das mulheres

 

Além do feito nacional, a edição de 1999 ficou marcada por uma conquista épica no Dakar. Naquele ano, a alemã Jutta Kleinschmidt, acompanhada da navegadora Tina Thörner, se converteu na primeira mulher a vencer uma especial do Rali Dakar. E o fez duas vezes, além de ter liderado o rali na disputa entre os carros.

Questionada sobre o impacto que o feito de Jutta teve no acampamento, Leilane recordou: “Foi forte. Foi muito forte”.

“Foi muito forte, porque ela fazia equipe com o marido dela e aí ela largou o marido ― não largou o marido, mas eles abriram duas equipes e ela estava correndo com uma outra moça. Então foi, para gente que era mulher, uma emoção muito grande. Muito grande”, comenta.

“Para todas as mulheres do rali. Não eram muitas, mas eram umas, sei lá, 10% do rali. Hoje eu já não lembro de cabeça, mas eu lembro que todas as mulheres ficaram muito orgulhosas de ter aquela alemã vencendo aquela etapa”, completa.

Jutta Kleinschmidt fez história no Dakar de 1999. Dois anos depois, a alemã venceria a competição (Jutta Kleinschmidt)

Memórias

 

20 anos após conquistar o terceiro lugar em sua primeira e única participação no Dakar, Leilane guarda na memória as imagens das paisagens africanas.

“Melhor lembrança? Tem uma lembrança dos olhos que é inesquecível. O deserto é uma coisa que, como a gente não tem, fico imaginando que, para um gringo, a nossa floresta deve ser muito emocionante, porque eles não têm a Floresta Amazônica. Mas a gente não tem um deserto como o Saara. O Saara é uma coisa encantadora”, conta. “Quando você olha em volta e não tem uma única montanha, não tem um único relevo, parece aquela coisa ‘Show de Truman’ que, se você esticar mão, vai alcançar o céu, porque você não tem a referência de altura. Então a impressão que você tem é que o céu está na sua cabeça”, segue.

“Então tenho lembranças de pôr do sol, tenho lembranças das dunas, tem dunas de todas as cores no deserto, de todo tipo: dunas com pedra, dunas com areia, com areia fofa, é uma coisa encantadora”, destaca. “Então tenho uma lembrança muito viva das imagens, que eram muita lindas, e tenho uma lembrança muito bonita de equipe. Trabalhar em equipe… televisão é equipe e acho muito legal trabalhar em equipe. E o Dakar é equipe. Sem equipe, você não faz nada”, reconhece.

Tomas, Leilane e Azevedo alcançaram o inesperado no Granada-Dakar 1999 ((Foto: Reprodução/Memória Globo))

Perguntada, então, se já teve vontade de retornar ao Dakar, Leilane confessa que não pretende se aventurar de novo, também por já ter conseguido um resultado melhor do que o esperado.

“Olha, os meninos me convidaram. Uma vez eles me convidaram para voltar, ligavam para mim dois ou três anos depois. O Tomas dizia: ‘Leilane, we are missing you!’ [“Leilane, nós sentimos sua falta”, em português]. Era muito bonitinho de ouvir”, entrega. “Mas acho assim: eu sou a única sul-americana a ter participado dessa corrida, que já nem existe mais, cheguei em terceiro lugar. Isso é que nem você fazer um full-hand no pôquer, um, sei lá, o valor máximo no pôquer. A possibilidade de isso não se repetir é grande”.

“Eu tinha chegado em terceiro. Para quem não esperava nem chegar, estava bom demais. Falei: ‘Para que vou repetir uma coisa que eu já fiz com sucesso?’. E eu não sou de esporte. Fiz alguns outros ralis no Brasil quando eu voltei a convite da Mitsubishi, eu participei de vários ralis, é uma delícia, mas eu sou jornalista, não sou corredora de rali”, conclui.

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